quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A confusão público/privado

As classes sociais não são mais determinantes da vida social. Muitas vezes, a aparência mostrada pelo indivíduo é de uma “classe social desejada”. O capitalismo – fruto da modernidade – oferece aos indivíduos uma infinidade de marcas e símbolos. Marcas e símbolos sobrepostos aos rostos individuais, as máscaras viram faces, e o capitalismo oferece ao espírito humano um show contendo milhares de máscaras. Isso concede ao individuo um destaque da multidão, mas não o torna público. A ação pública como sujeito nasce de uma consciência diferente da de espectador.
Assim sendo, as relações entre os indivíduos são íntimas. As pequenas e reservadas instâncias da vida íntima são intensas e o show público se funde com o íntimo. Cria-se a sociedade intimista.
A massa heterogênea de estranhos é socialmente recalcada. Ao estabelecer uma ligação entre os traços de sua personalidade e sua intimidade – representada em suas roupas, corpo, discurso, comportamento – o espectador é inibido ao contato público, pois tende a acreditar que sua personalidade será revelada. Essa consciência anti-social pública, porém não anti-sociável, é o que eleva as relações individuais à intimidade.
Os indivíduos não são mais que atores representando um espetáculo sem arte. Os papéis consistem no conjunto de ações, atividades, comportamentos que se mostram adequados em determinadas situações. Sendo assim, o convívio social é um circo que atores interpretam ações carregadas de valores. Todavia isso não ocorre o tempo todo, e é nessa cisão que se apóia as diferenças entre ator, sujeito e de indivíduo. Devemos ponderar ainda que essas duas instâncias não sejam antagônicas, mas sim complementares. Uma serve a outra e é ao mesmo tempo contida e continente da outra parte. Sennett afirma inclusive que “os seres humanos precisam manter uma certa distância da observação íntima por parte do outro para poderem sentir-se sociáveis. Aumentem o contato íntimo e diminuirão a sociabilidade.” (1998, p.24).
O silêncio é o agente disseminado entre as multidões. Atuações vazias em significado e com “um fim em si” começam a surgir e a ganhar sentido. Temos então uma soma de situações que transformam a sociedade, Sennett fala a esse respeito:
           

[...] Numa sociedade íntima, todos os fenômenos sociais, por mais que fossem impessoais em sua estrutura, eram convertidos em questões de personalidade, com a finalidade de adquirirem um sentido. Os conflitos políticos são interpretados em termos do jogo das personalidades políticas; a liderança é interpretada em termos de “credibilidade”, mais do que em termos de proezas. A “classe” de alguém parecia ser o produto da condução e a da habilidade pessoais, mais do que uma determinação social sistemática. Diante da complexidade, as pessoas procuravam algum principio interior e essencial, luma vez que a conversão dos fatos sociais em símbolos de personalidade só pode ser bem-sucedida quando as complexas nuanças da contingência e da necessidade estão retiradas de cena.
A entrada da personalidade para dentro do domínio público, no século XIX, preparou a base para essa sociedade intimista, induzindo as pessoas a acreditarem que os intercâmbios em sociedade eram demonstrações da personalidade, e compondo de tal modo a percepção da personalidade que os conteúdos dela nunca chegavam a se cristalizar, e desse modo engajando os homens numa busca obsessiva e infindável de pistas de como os outros eles próprios eram “realmente”. (1998, p.271)

           
O aparecimento da neutralidade do sujeito começa a gerar nas consciências dos indivíduos novas percepções. O silêncio e o desaparecimento de sinais sociais geram uma incerteza centrada no individuo. Norbert Elias aborda os princípios dessa consciência silenciosa e individual:



O que se tornou perceptível na era de Descartes foi um movimento nessa mesma direção, à medida que o homem ascendia na escada em caracol. Se as pessoas do nível precedente de autoconsciência se haviam percebido, em consonância com sua educação ou Estados inseridos num reino espiritual governado por Deus, passaram então a se perceber cada vez mais como indivíduos, embora sem perder inteiramente a antiga concepção. A modificação nos estilos de vida social impôs uma crescente restrição aos sentimentos, uma necessidade maior de observar e pensar antes de agir, tanto com respeito aos objetos físicos quanto em relação aos seres humanos. Isso deu mais valor a ênfase à consciência de si mesmo como individuo desligado de todas as outras pessoas e coisas (1994, p.91)   


Todos esses trâmites são conseqüências e só foram possíveis por meio do processo modernizador. A modernidade foi marcada por uma história de desencantamento do mundo pelo sujeito, onde ele afastava-se de Deus, ele transcendeu a idéia teocêntrica onde sua existência só tinha sentido com um fim em Deus. Sendo assim, ele foi jogando pra dentro de si. Sua existência tinha um fim em si próprio. O homem voltou para o mundo tendo uma visão de ser incluso no mundo, agente transformador e transformado.
Esse desencantamento do mundo, a quebra do véu de significados que envolviam a existência deixou o homem a mercê de si próprio. É nesse contexto que ele volta-se para uma formação mais humana. Porém o processo modernizador não foi fielmente concluído. A formação humana foi racionalizada e mais tarde instrumentalizada afastando novamente o homem do homem. A razão iluminada passa a ser a razão técnica.




E assim segue.
Nascemos num mundo transtornado em vórtex de egocentrismo alienado. Vivemos para um EU que nem conhecemos. Tristes dias.